sábado, 26 de agosto de 2017

ANTROPOLOGIA SALMÍSTICA 

Reflexões sobre a alma o tempo e o Eterno.

Salmos e teologia


 Uma teologia salmística. Esse será um dos objetivos desta série de textos (pequenos – quase sempre, ou “grandes” – dependerá muito da visão do leitor) sobre o saltério judaico. É preciso, antes e tudo, identificar o tipo de teologia encontrada nos salmos? É ela elitista ou popular? Acadêmica ou experimenta? Responder a estas interrogações se faz importante para nortear toda a discussão baseada nos salmos. Portanto, pode-se adiantar em dizer, que, por teologia salmística, entende-se aquela voltada para a alma; para a adoração; para o encontro entre Criador e criatura. Uma teologia íntima.  Teologia que acontece no plano do particular.   “...vá para o seu quarto, feche a porta e ore a seu pai, que está em secreto”[1].
Uma teologia humana. Foi Sêneca, tutor de Nero quem disse: “sou humano, e nada do que é humano me é estranho”[2]. A teologia dos salmos é humana, espiritual, e, portanto, humanamente divina. Nela, não se vê homens demonstrando erudição no campo da fé; nem mesmo, rabinos demonstrando seus conhecimentos da Torá. Muito menos, homens reivindicando para si uma natureza que só pertence a Deus. Daí o salmista perguntar: “Que é o Homem...? ”[3] O que se vê são homens em sua intimidade com Deus. Não são homens falando com homens; antes, são homens falando com Deus sobre si mesmos, ou sobre outros homens. É humana, porque o homem está “nu” diante de seu Senhor; é espiritual, porque, é uma oração, um louvor, um devocional – o momento mais sagrado na vida da criatura, chamada – ser humano.
Neste particular, o livro dos salmos, é o maior legado da Bíblia à alma do homem que busca o Sagrado, O Supremo Ser, O que de todos é a Vida, Inspiração e Repouso. O que se pode esperar de um Saltério produzido ou formado no fogo da experiência de uma vida com Deus? Os hinários congregacionais das igrejas históricas têm algo a dizer sobre isso; basta olhar a biografia de muitos dos seus poetas e ver o que se estava passando na vida de cada um deles. O que se passava na vida da Frida Vingren, por exemplo, quando compôs o hino 126 da harpa crista? Seus sentimentos podem ser resumidos na estrofe que se segue:
Quem quiser de Deus ter a coroa,
Passará por mais tribulação;
Às alturas santas ninguém voa,
Sem as asas da humilhação;
O Senhor tem dado aos Seus queridos,
Parte do Seu glorioso ser;
Quem no coração for mais ferido,
Mais daquela glória há de ter[4].

Esse tipo de poesia, não só é sagrada, mas também teológica; todavia, não a teologia acadêmica, mas, teologia forjada no fogo da experiência que se adquire em andar com Deus. Por isso o salmista pode exultar na dedicação do templo: “Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã”[5]. Não é uma teologia elitista, mas uma teologia devocional e experimental. “...Provai e vede que o Senhor é bom”[6]. É uma teologia mais patrística (que adora enquanto se constrói) do que uma teologia moderna (em que sobre tudo se interroga, e em nada se crer).
Uma teologia sem máscaras. Os salmos nos brindam com uma teologia sem máscaras. Sem a necessidade de costurarmos folhas de figueira para cobrir a vergonha na presença do Criador, como um “bom” filho de Adão[7]. “...e percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si”.[8] O relato bíblico, mostra uma atitude dos primeiros país, que se transformou em uma normalidade na vida dos homens. A hipocrisia, que mora no ambiente da religião institucional é uma consequência direta desse ato. Nosso Senhor fez duras críticas a essa prática. Todavia, nos salmos, não há lugar para homens com “máscaras”. Seria ser muito pretensioso, se reportar a Deus como outra pessoa. O Jacó que enganou seu pai: “Você é mesmo meu filho Esaú? ” – perguntou, Isaque – ele respondeu: “Sou”[9]; não pôde fazer o mesmo com Deus: “O Homem[10] lhe perguntou: ‘Qual é o seu nome?’ ‘Jacó’, respondeu ele”.[11] A figura de Jacó, é uma referência a incapacidade humana de estar na presença de Deus de com aparências. Neste particular o grito de Isaias é bem significativo. “Então gritei: ‘ai de mim! Estou perdido! Pois sou homem de lábios impuros e vivo no meio de um povo de lábios impuros; os meus olhos viram o Rei, o Senhor os Exércitos’”[12]. Algo semelhante aconteceu com C. S. Lewis, ele conta em sua autobiografia, como o seu “colete fisioterápico” ou sua “carapaça” que o fazia parecer uma lagosta, foi-se aos poucos deteriorando e medida em que o Deus se aproximava dele. No caso de Lewis, não era em si um problema de hipocrisia, mas de “resistência” humana ao “caçador” divino; ele diz:

Eu subia a colina Headington no andar superior de um ônibus. Sem palavras e (acho eu) quase sem imagens, uma verdade sobre mim mesmo me foi de alguma forma apresentada. Tomei ciência de que vinha mantendo algo a distância, ou isolando esse algo lá fora. Ou – se o leitor preferir – que estava usando uma roupa justa demais, como um colete fisioterápico, ou mesmo uma carapaça, como se eu fosse uma lagosta. Senti, ali e então, que me era dada a possibilidade da escolha. Eu poderia abrir a porta ou deixa-la trancada; poderia tirar a carapaça ou conservá-la. Nenhuma das alternativas me era apresentada como dever; nenhuma delas trazia embutida nem ameaça nem promessa, embora eu soubesse que abrir a porta ou tirar o colete significava o incerto. A escolha parecia ponderosa, mas era também estranhamente desprovida de emoção [...]. Escolhi abrir, tirar a carapaça, afrouxar as rédeas. Digo “escolhi”, mas não me parecia realmente possível fazer o contrário. Senti-me como se fosse um boneco de neve que, depois de longo tempo, começasse a derreter (LEWIS, 2015, p. 199)[13].

Nas palavras e Lewis, à medida que a Presença de Deus – que no momento Lewis o chamava de “Espírito” (uma referência a impossibilidade desse Ser Supremo comunicar-se com os homens) se aproximava, todas as suas resistências humanas caiam por terra. Experiências como estas, marcam a introdução de homens e mulheres na estrada dos salmistas. Estrada marcada por confissões, arrependimentos e encontros com Deus. A oração confessional de Davi é um bom exemplo: “Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga a minas transgressões. Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar”[14]. Há muitos casos como este nos salmos.
Uma teologia do coração. Uma teologia do coração, é uma disposição de humildade diante do Senhor. É uma “inteligência humilhada”[15]. São as confissões de Santo Agostinho; o Discipulado de Dietrich Bonhoeffer; e por que não dizer, Romanos do apostolo Paulo? Nos salmos a exaltação não é uma expressão corporal ao audível, mas, antes de tudo, interna. “Regozije-se o meu coração na tua salvação”[16]. Falar a verdade de “...de coração...”[17], é quesito indispensável para habitar no Tabernáculo. Um coração humilhado é fonte de ensino. “Pois até durante a noite o meu coração me ensina”[18].
Uma espiritualidade do coração era ou, pelo menos, ainda é, o ideal da verdadeira fé em Deus. Nos dias de Jesus, tanto esse ideal, como os mandamentos de Deus estavam sendo violentado pela tradição dos anciãos. “E porque vocês transgridem o mandamento de Deus por causa da tradição de vocês”[19]. Jesus os acusava. A tradição, que por sua vez, era filha direta da hipocrisia estava lançando por terra os fundamentos da verdadeira adoração. Jesus os criticava: “Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens”[20]. É religiosidade, tem um “poder” de tirar os homens de seu verdadeiro ideal, e fazer com que adorem a criatura (que eles mesmos criam) em ligar do criador.
Uma teologia significativa. Finalmente, pode-se afirmar após tudo o que foi dito acima, que a teologia salmística, é, por natureza, uma teologia significativa. Ela fala a língua dos homens. Fala de uma espiritualidade encarnacional. É o mundo de Deus se acomodando ao mundo os homens. É a pedagogia de Deus para se fazer entender à “infantilidade” humana. Isso é tão significativo que nosso Senhor citou e se viu nos salmos. “A seguir, Jesus lhes disse: ‘São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco. Importava que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’”[21]. Nos salmos a espiritualidade passar a ter um significado concreto e tangível. A experiência com Deus deixa de ser uma teoria – uma possibilidade e passa a ser uma prática vívida – um andar diário com Deus.




[1] Mateus 6. 7 NVI.
[2] FERACINE, Luis. Coleção Pensamento e Vida. Sêneca: Filósofo Estoico e Tutor de Nero. São Paulo, SP. Editora Escola. 2011.
[3] Salmos 8. 4 ARA.
[4] https://harpacrista.org/hino/126-bem-aventuranca-do-crente/
[5] Salmos 30. 5 ARA.
[6] Salmos 34. 8 ARA.
[7] A expressão, filho de Adão é uma referência a forma de C. S. Lewis denominar a humanidade caída nas Crônicas de Nárnia.
[8] Gênesis 3. 7 ARA.
[9] Gênesis 27. 24 NVI.
[10] O Homem, aqui, segundo muitos estudiosos, é uma manifestação teofânica de Deus.
[11] Gênesis 32. 27 NVI.
[12] Isaias 6. 5 NVI.
[13] LEWIS, C. S. Surpreendido Pela Alegria. Viçosa, MG. Editora Ultimato, 2015.
[14] Salmos 51. 1-4 ARA.
[15] Fazendo referência a obra do teólogo Jonas Madureira.
[16] Salmo 13. 5 ARA.
[17] Salmo 15. 2 ARA.
[18] Salmo 16. 7 ARA.
[19] Mateus 15. 3. NVI.
[20] MATEUS 15. 8, 9 NVI.
[21] Lucas 24. 44 ARA.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A ANTROPOLOGIA SALMÍSTICA 
Reflexões sobre a alma e o tempo e o eterno.



O livro dos salmos é carregado de “sentimento espiritual”. Sentimento espiritual é o tipo de coisa que sentimos em relação a Deus e as coisas concernentes a Deus.
Nos salmos a alma que chora toda uma noite para poder sorrir logo ao amanhecer (Sl 30.5); nos salmos vemos a alma que de tanto sofrer chega ao ponto de invejar a riqueza dos maus (Sl 73. 3); vemos uma alma que se azeda diante dos infortúnios da vida (Sl 73. 21); vemos a alma que tem solidão de abrigo e pessoas – outras almas (Sl 142.4); vemos uma alma em sequidão que anseia por significado, plenitude, prazer, vida – Deus.
Nos salmos vemos o espírito que pede uma reforma de retidão no seu próprio espírito (Sl 51.10); vemos um espírito que pede comunhão com um Espírito pleno de amor, paz e salvação (Sl 51.11,12); vemos o espírito que encontrou morada nos braços do pai, assim como o pardal ninho para si (Sl 84.2,3); vemos um espírito que deseja estar na presença do Espírito de Deus.
A “antropologia salmística” está firmada nisto: os salmos revelam nossa autobiografia espiritual.
Os salmos são a oração da nossa alma e o louvor do nosso espírito. Os salmos não só falam de Deus, antes, falam do homem que fala com Deus e do Deus que fala ou responde dentro deste homem. Como disse Leonardo Boff: “Não há sentimento no ser humano que não esteja representado nos salmos, como um espelho”[1].
Neste mundo de espiritualidade sem mascaras que é o saltério judaico o verdadeiro cristão se encontra e se identifica, sem ter que “dançar”, “pular” e dramatizar no “picadeiro” da hipocrisia.



[1] http://www.jb.com.br/leonardo-boff/noticias/2014/02/03/os-salmos-a-anatomia-da-alma-humana/




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