Reflexões sobre a alma o tempo e o Eterno.
Salmos e teologia
Uma teologia salmística.
Esse será um dos objetivos desta série de textos (pequenos – quase sempre, ou
“grandes” – dependerá muito da visão do leitor) sobre o saltério judaico. É
preciso, antes e tudo, identificar o tipo de teologia encontrada nos salmos? É
ela elitista ou popular? Acadêmica ou experimenta? Responder a estas
interrogações se faz importante para nortear toda a discussão baseada nos
salmos. Portanto, pode-se adiantar em dizer, que, por teologia salmística,
entende-se aquela voltada para a alma; para a adoração; para o encontro entre
Criador e criatura. Uma teologia íntima.
Teologia que acontece no plano do particular. “...vá para o seu quarto, feche a porta e
ore a seu pai, que está em secreto”[1].
Uma teologia humana.
Foi Sêneca, tutor de Nero quem disse: “sou humano, e nada do que é humano me é
estranho”[2]. A
teologia dos salmos é humana, espiritual, e, portanto, humanamente divina.
Nela, não se vê homens demonstrando erudição no campo da fé; nem mesmo, rabinos
demonstrando seus conhecimentos da Torá. Muito menos, homens reivindicando para
si uma natureza que só pertence a Deus. Daí o salmista perguntar: “Que é o Homem...?
”[3] O
que se vê são homens em sua intimidade com Deus. Não são homens falando com
homens; antes, são homens falando com Deus sobre si mesmos, ou sobre outros
homens. É humana, porque o homem está “nu” diante de seu Senhor; é espiritual,
porque, é uma oração, um louvor, um devocional – o momento mais sagrado na vida
da criatura, chamada – ser humano.
Neste particular, o livro dos salmos, é o
maior legado da Bíblia à alma do homem que busca o Sagrado, O Supremo Ser, O
que de todos é a Vida, Inspiração e Repouso. O que se pode esperar de um
Saltério produzido ou formado no fogo da experiência de uma vida com Deus? Os
hinários congregacionais das igrejas históricas têm algo a dizer sobre isso;
basta olhar a biografia de muitos dos seus poetas e ver o que se estava
passando na vida de cada um deles. O que se passava na vida da Frida Vingren,
por exemplo, quando compôs o hino 126 da harpa crista? Seus sentimentos podem
ser resumidos na estrofe que se segue:
Quem
quiser de Deus ter a coroa,
Passará
por mais tribulação;
Às
alturas santas ninguém voa,
Sem
as asas da humilhação;
O
Senhor tem dado aos Seus queridos,
Parte
do Seu glorioso ser;
Quem
no coração for mais ferido,
Mais
daquela glória há de ter[4].
Esse tipo de poesia, não só é sagrada, mas
também teológica; todavia, não a teologia acadêmica, mas, teologia forjada no
fogo da experiência que se adquire em andar com Deus. Por isso o salmista pode
exultar na dedicação do templo: “Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria
vem pela manhã”[5].
Não é uma teologia elitista, mas uma teologia devocional e experimental. “...Provai
e vede que o Senhor é bom”[6]. É
uma teologia mais patrística (que adora enquanto se constrói) do que uma
teologia moderna (em que sobre tudo se interroga, e em nada se crer).
Uma teologia sem máscaras.
Os salmos nos brindam com uma teologia sem máscaras. Sem a necessidade de
costurarmos folhas de figueira para cobrir a vergonha na presença do Criador,
como um “bom” filho de Adão[7].
“...e percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas
para si”.[8] O
relato bíblico, mostra uma atitude dos primeiros país, que se transformou em
uma normalidade na vida dos homens. A hipocrisia, que mora no ambiente da
religião institucional é uma consequência direta desse ato. Nosso Senhor fez
duras críticas a essa prática. Todavia, nos salmos, não há lugar para homens
com “máscaras”. Seria ser muito pretensioso, se reportar a Deus como outra
pessoa. O Jacó que enganou seu pai: “Você é mesmo meu filho Esaú? ” –
perguntou, Isaque – ele respondeu: “Sou”[9];
não pôde fazer o mesmo com Deus: “O Homem[10]
lhe perguntou: ‘Qual é o seu nome?’ ‘Jacó’, respondeu ele”.[11] A
figura de Jacó, é uma referência a incapacidade humana de estar na presença de
Deus de com aparências. Neste particular o grito de Isaias é bem significativo.
“Então gritei: ‘ai de mim! Estou perdido! Pois sou homem de lábios impuros e
vivo no meio de um povo de lábios impuros; os meus olhos viram o Rei, o Senhor
os Exércitos’”[12].
Algo semelhante aconteceu com C. S. Lewis, ele conta em sua autobiografia, como
o seu “colete fisioterápico” ou sua “carapaça” que o fazia parecer uma lagosta,
foi-se aos poucos deteriorando e medida em que o Deus se aproximava dele. No
caso de Lewis, não era em si um problema de hipocrisia, mas de “resistência”
humana ao “caçador” divino; ele diz:
Eu subia a colina Headington no andar superior de um ônibus. Sem
palavras e (acho eu) quase sem imagens, uma verdade sobre mim mesmo me foi de
alguma forma apresentada. Tomei ciência de que vinha mantendo algo a distância,
ou isolando esse algo lá fora. Ou – se o leitor preferir – que estava usando
uma roupa justa demais, como um colete fisioterápico, ou mesmo uma carapaça,
como se eu fosse uma lagosta. Senti, ali e então, que me era dada a
possibilidade da escolha. Eu poderia abrir a porta ou deixa-la trancada;
poderia tirar a carapaça ou conservá-la. Nenhuma das alternativas me era
apresentada como dever; nenhuma delas trazia embutida nem ameaça nem promessa,
embora eu soubesse que abrir a porta ou tirar o colete significava o incerto. A
escolha parecia ponderosa, mas era também estranhamente desprovida de emoção
[...]. Escolhi abrir, tirar a carapaça, afrouxar as rédeas. Digo “escolhi”, mas
não me parecia realmente possível fazer o contrário. Senti-me como se fosse um
boneco de neve que, depois de longo tempo, começasse a derreter (LEWIS, 2015,
p. 199)[13].
Nas palavras e Lewis, à medida que a Presença
de Deus – que no momento Lewis o chamava de “Espírito” (uma referência a
impossibilidade desse Ser Supremo comunicar-se com os homens) se aproximava,
todas as suas resistências humanas caiam por terra. Experiências como estas,
marcam a introdução de homens e mulheres na estrada dos salmistas. Estrada
marcada por confissões, arrependimentos e encontros com Deus. A oração
confessional de Davi é um bom exemplo: “Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a
tua benignidade; e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga a minas
transgressões. Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu
pecado. Pois eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre
diante de mim. Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante
os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu
julgar”[14].
Há muitos casos como este nos salmos.
Uma teologia do coração.
Uma teologia do coração, é uma disposição de humildade diante do Senhor. É uma “inteligência
humilhada”[15].
São as confissões de Santo Agostinho; o Discipulado de Dietrich Bonhoeffer; e
por que não dizer, Romanos do apostolo Paulo? Nos salmos a exaltação não é uma
expressão corporal ao audível, mas, antes de tudo, interna. “Regozije-se o meu
coração na tua salvação”[16].
Falar a verdade de “...de coração...”[17],
é quesito indispensável para habitar no Tabernáculo. Um coração humilhado é
fonte de ensino. “Pois até durante a noite o meu coração me ensina”[18].
Uma espiritualidade do coração era ou, pelo
menos, ainda é, o ideal da verdadeira fé em Deus. Nos dias de Jesus, tanto esse
ideal, como os mandamentos de Deus estavam sendo violentado pela tradição dos
anciãos. “E porque vocês transgridem o mandamento de Deus por causa da tradição
de vocês”[19].
Jesus os acusava. A tradição, que por sua vez, era filha direta da hipocrisia estava
lançando por terra os fundamentos da verdadeira adoração. Jesus os criticava: “Este
povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram;
seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens”[20].
É religiosidade, tem um “poder” de tirar os homens de seu verdadeiro ideal, e
fazer com que adorem a criatura (que eles mesmos criam) em ligar do criador.
Uma teologia significativa.
Finalmente, pode-se afirmar após tudo o que foi dito acima, que a teologia
salmística, é, por natureza, uma teologia significativa. Ela fala a língua dos
homens. Fala de uma espiritualidade encarnacional. É o mundo de Deus se
acomodando ao mundo os homens. É a pedagogia de Deus para se fazer entender à “infantilidade”
humana. Isso é tão significativo que nosso Senhor citou e se viu nos salmos. “A
seguir, Jesus lhes disse: ‘São estas as palavras que eu vos falei, estando
ainda convosco. Importava que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na
Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’”[21].
Nos salmos a espiritualidade passar a ter um significado concreto e tangível. A
experiência com Deus deixa de ser uma teoria – uma possibilidade e passa a ser
uma prática vívida – um andar diário com Deus.
[1]
Mateus 6. 7 NVI.
[2]
FERACINE, Luis. Coleção Pensamento e Vida. Sêneca:
Filósofo Estoico e Tutor de Nero. São Paulo, SP. Editora Escola. 2011.
[3] Salmos
8. 4 ARA.
[4] https://harpacrista.org/hino/126-bem-aventuranca-do-crente/
[5]
Salmos 30. 5 ARA.
[6] Salmos
34. 8 ARA.
[7] A
expressão, filho de Adão é uma referência a forma de C. S. Lewis denominar a
humanidade caída nas Crônicas de Nárnia.
[8]
Gênesis 3. 7 ARA.
[9]
Gênesis 27. 24 NVI.
[10] O
Homem, aqui, segundo muitos estudiosos, é uma manifestação teofânica de Deus.
[11]
Gênesis 32. 27 NVI.
[12]
Isaias 6. 5 NVI.
[13]
LEWIS, C. S. Surpreendido Pela Alegria.
Viçosa, MG. Editora Ultimato, 2015.
[14]
Salmos 51. 1-4 ARA.
[15] Fazendo
referência a obra do teólogo Jonas Madureira.
[16] Salmo
13. 5 ARA.
[17] Salmo
15. 2 ARA.
[18] Salmo
16. 7 ARA.
[19] Mateus
15. 3. NVI.
[20]
MATEUS 15. 8, 9 NVI.
[21] Lucas
24. 44 ARA.